Feminismo negro
Feminismo negro refere-se às ideologias centradas nas experiências de mulheres negras. Um tema central no feminismo negro é a interseccionalidade, que se refere às maneiras pelas quais gênero, raça e outras categorias sociais interagem para influenciar a vida e as experiências de opressão de um indivíduo. Feministas negras proeminentes dos séculos XIX ao XXI incluem Anna Julia Cooper, Ida B. Wells, Sojourner Truth, Audre Lorde, Patricia Hill Collins, Gloria Jean Watkins aka bell hooks, Kimberlé Crenshaw, Chimamanda Ngozi Adichie, e Claire Heuchan aka Sister Outrider.
História
Mulheres como Sojourner Truth, Anna Julia Cooper e Ida B. Wells exemplificam o ativismo feminista negro no século XIX.
Em 1851, a abolicionista e defensora dos direitos das mulheres Sojourner Truth fez um discurso numa convenção dos direitos das mulheres na qual contestou tanto o racismo quanto o sexismo enfrentado pelas mulheres negras. Nenhuma transcrição desse discurso existe, apesar de que Marius Robinson, que estava presente durante o discurso e que trabalhou com Truth, publicou a seguinte versão escrita algumas semanas após o discurso:
Quero dizer algumas coisas sobre esse assunto. Sou uma direito das mulheres [sic]. Tenho tanto músculo quanto qualquer homem, e posso trabalhar tanto quanto qualquer homem. Eu arei e colhi e debulhei e piquei e cortei, e algum homem consegue fazer mais que isso? Escutei muito sobre os sexos serem iguais. Posso suportar tanto peso quanto qualquer homem, e consigo comer tanto quanto qualquer um também, se puder. Sou tão forte quanto qualquer homem é agora. Quanto a intelecto, tudo que posso dizer é, se uma mulher tiver uma caneca, e um homem um barril - por que ela não pode ter a sua caneca cheia? Você não precisa ter medo de nos dar nossos direitos por medo de que tomaremos demais - porque não podemos tomar mais do que a nossa caneca comporta. O pobre homem parece estar todo confuso, e não sabe o que fazer. Pois, crianças, se vocês têm os direitos de uma mulher, deem-nos a ela e se sentirão melhores. Vocês terão os seus próprios direitos, e eles não darão muitos problemas. Não sei ler, mas eu sei ouvir. Ouvi a Bíblia e aprendi que Eva levou o homem a pecar. Bem, se a mulher prejudicou o mundo, dê a ela uma chance de consertá-lo novamente. A Senhora falou sobre Jesus, e sobre como ele nunca desprezou nenhuma mulher, e ela estava certa. Quando Lázaro morreu, Maria e Marta vieram a ele com fé e amor e imploraram a ele que ressucitasse o seu irmão. E Jesus chorou e Lázaro retornou. E como Jesus veio ao mundo? Através do Deus que o criou e da mulher que o pariu. Homem, onde está a sua parte? Mas as mulheres estão se levantando abençoadas por Deus e alguns homens estão se levantando com elas. Mas o homem está numa situação difícil, o pobre escravo está atrás dele, a mulher está atrás dele, ele está com certeza entre um falcão e um urubu.
Cerca de uma década depois, a ativista abolicionista e de direitos das mulheres Frances Gage publicou uma versão diferente, apresentando um forte sotaque sulista, recordado de suas lembranças. A seguinte é a sua recordação do discurso, com o sotaque sulista editado para facilitar a leitura:
As líderes do movimento tremeram ao avistar uma mulher negra alta e magra, num vestido cinza e de turbante branco, encimado por uma touca tosca, entrar deliberadamente na igreja, caminhar com o ar de uma rainha até o corredor, e assentar-se nos degraus do púlpito. Um zumbido de desaprovação foi ouvido pela casa inteira, e de lá pararam nos ouvidos dos presentes, "Uma questão da abolição!" "Direitos das mulheres e escravos!" "Eu avisei!" "Vá, negrinha!"... De novo e de novo, pessoas receosas tremendo vieram até mim e disseram, com franqueza, "Não a deixe falar, sra. Gage, isso vai nos arruinar. Todos os jornais da terra confundirão a nossa causa com a da abolição e dos escravos, e seremos totalmente condenadas". A minha única resposta foi, "Veremos quando a hora chegar".
No segundo dia o trabalho ficou quente. Ministros metodistas, batistas, episcopais, presbiterianos e universalistas vieram ouvir e discutir as resoluções aprensentadas. Um reivindicou direitos e privilégios superiores aos homens, sob a justificativa de um "intelecto superior"; outro, por causa da "masculinidade de Cristo; se Deus desejasse a igualdade para a mulher, Ele teria dado algum símbolo de Sua vontade através do nascimento, vida e morte do Salvador". Outro nos deu uma visão teológica do "pecado de nossa primeira mãe".
Houve muitas poucas mulheres naqueles dias que se atreviam a "falar em reunião"; e os majestosos professores do povo estavam aparentemente ficando com o melhor de nós, enquanto os garotos nos corredores, e os zombeteiros nos bancos, estavam em sua maioria apreciando o que eles suponham ser a derrota daquelas "obstinadas". Algumas das colegas mais sensíveis estavam a ponto de perder a dignidade, e a atmosfera pressagiava uma tempestade. Quando lentamente de seu assento no canto levantou-se Sojourner Truth, que, até agora, mal havia levantado sua cabeça. "Não a deixem falar!", arfaram meia dúzia no meu ouvido. Ela se moveu lenta e solenamente até a frente, jogou a velha touca aos pés, e direcionou seus grandes e expressivos olhos a mim. Houve um som sibilante de desaprovação acima e abaixo. Eu me levantei e anunciei, "Sojourner Truth", e implorei à audiência por silêncio durante alguns momentos.
O tumulto diminui de uma vez, e todos os olhos estavam fixos nessa forma quase amazônica, que tinha quase 1,80m de altura, cabeça erguida, e olhos penetrando o horizonte acima como alguém num sonho. À sua primeira palavra houve um silêncio profundo. Ela falava com um timbre profundo, o qual, apesar de não ser elevado, alcançava quase todos os ouvidos da casa, e passava através da multidão nas portas e janelas.
"Bem, crianças, onde há tanto barulho deve haver algo fora de harmonia. Acho que entre os escravos do sul e as mulheres do norte, todos falando sobre direitos, o homem branco estará em apuros muito em breve. Mas o que é tudo isso sobre o que estamos falando aqui?"
"Aquele homem ali disse que mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e carregadas sobre valas, e precisam do melhor assento em todos os lugares. Ninguém me ajuda a entrar em carruagens, ou sobre poças de lama, ou me dá o melhor assento!" E elevando-se a toda a sua altura, e sua voz num tom como o de um trovão, ela perguntou. "E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para o meu braço! (e ela ergueu o seu braço direito até a altura do ombro, mostrando uma enorme força muscular). Eu arei, e plantei, e recolhi em celeiros, e homem nenhum conseguiu me superar! E eu não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar e comer tanto quanto um homem--quando eu tinha condições--e aguentar o chicote também! E eu não sou uma mulher? Eu pari treze filhos, e vi a maior parte deles vendidos para a escravidão, e quando eu chorei com o meu pesar de mãe, ninguém além de Jesus me ouviu! E eu não sou uma mulher?"
"Então eles falam sobre essa coisa na cabeça; como é que eles chamam isso?" ("Intelecto", sussurou alguém próximo). "É isso, querido. O que isso tem a ver com os direitos das mulheres ou os direitos dos escravos? Se o meu copo não aguenta nada além de uma caneca, e o seu aguenta um barril, você não seria egoísta ao não me deixar ter a minha medida meio cheia?" E ela apontou o seu dedo significativo, e dirigiu um olhar penetrante ao ministro que havia dado esse argumento. Os aplausos foram longos e altos.
"Aquele homenzinho de preto ali, ele disse que mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens, porque Cristo não foi uma mulher! De onde o seu Cristo veio?" Trovões não poderiam ter silenciado aquela multidão, como fizeram aqueles tons profundos e maravilhosos, enquanto ela estava em pé com seus braços erguidos e olhos de fogo. Elevando ainda mais a sua voz, ela repetiu, "De onde veio o seu Cristo? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele!" Oh, que reprimenda foi aquela para aquele homenzinho.
Voltando-se novamente a outro opositor, ela tomou a defesa da Mãe Eva. Não consegui acompanhá-la o tempo inteiro. Foi penetrante, e espirituoso, e solene; provocando com quase todas as frases aplausos ensurdecedores; e ela terminou declarando: "Se a primeira mulher que Deus fez era forte o bastante para virar o mundo de ponta cabeça sozinha, essas mulheres juntas (e ela dirigiu o seu olhar à plataforma) deveriam ser capazes de virá-lo, e colocá-lo de volta no lugar novamente! E agora elas estão pedindo para fazer isso, é melhor os homens deixarem-nas". Aplausos contínuos saudaram essas palavras. "Obrigada por me ouvirem, e agora a velha Soujourner não tem mais nada a dizer".
Em 1892 outra mulher negra, Anna Julia Cooper, publicou "Uma Voz do Sul" (A Voice from the South, em inglês), um livro no qual descreveu a importância das vozes das mulheres negras nas mudanças sociais. Outra feminista negra exemplar, Ida B. Wells, uma ativista e jornalista, liderou uma cruzada contra o linchamento durante os anos 1890. O trabalho dessas e de outras mulheres negras mostram como as políticas da comunidade negra estabeleceram as fundações para a justiça social contra o sexismo de homens negros, a marginalização vinda de feministas brancas, e a privação de direitos advinda do privilégio do homem branco.
Interseccionalidade
Um tema central no feminismo negro é o da interseccionalidade, que refere-se às maneiras através das quais gênero, raça e outras categorias sociais (como classe, orientação sexual etc.) interagem, ou "intersectam-se" para influenciar a vida e experiências de opressão de um indivíduo. O termo foi cunhado pela acadêmica jurídica Kimberlé Crenshaw em 1989, apesar de o conceito preceder a sua cunhagem do termo.
Nos anos 1970, um grupo de mulheres negras formou o Coletivo Combahee River. Elas viam a interseccionalidade (como é chamada atualmente) como integral na distinção entre o seu movimento e o do feminismo branco, porque "a maior fonte de dificuldade no nosso trabalho político é que não estamos simplesmente tentando lutar contra a opressão em uma frente ou até mesmo duas, mas ao invés disso endereçamos uma grande gama de opressões".[1] Durante o século XX, mulheres negras permaneceram ativas nos movimentos de justiça social como o feminismo negro, e a interseccionalidade expandiu-se até o discurso acadêmico e profissional. Mulheres como a socióloga Patricia Hill Collins, a acadêmica Kimberlé Crenshaw e a escritora bell hooks são alguns exemplos.
Em anos recentes, o termo interseccionalidade tem sido frequentemente mal empregado por ativistas transgênero, que insistem que o feminismo interseccional deve centrar pessoas do sexo masculino que se identificam como mulheres trans e fazem frequentemente comparações entre mulheres negras e mulheres trans, o que algumas mulheres negras consideram errôneo e racista, já que mulheres negras, ao contrário de mulheres trans, são inequivocamente do sexo feminino.
Leituras recomendadas
- A Brief History of Black Feminism em Blackfeminisms.com (em inglês)
- Black Feminism Defined em Blackfeminisms.com (em inglês)
- "Ain't I a Woman" na Wikipédia
- Interseccionalidade na Wikipédia
- Sister Outrider - Blog de Claire Heuchan (em inglês)