Cisgênero

Na ideologia transgênero, o termo cisgênero (frequentemente encurtado para cis, como em homem cis ou mulher cis) refere-se a uma pessoa cuja suposta identidade de gênero alinha-se com o seu sexo, em oposição às pessoas transgênero, que alegam ter uma "identidade de gênero" que contradiz o seu sexo.[1] Como feministas opõe-se à noção essencialista de gênero de uma identidade feminina inerente, nata e essencial, e definem gênero como uma ferramenta patriarcal de opressão baseada em sexo no lugar de uma identidade baseada na personalidade, elas consequentemente discordam do conceito de uma "pessoa cisgênero", como definida na base de uma identidade de gênero.[2]

Uma definição simplista do termo cis, frequentemente usada para defendê-lo de seus críticos, é a de dizer respeito a "qualquer pessoa que não seja trans". Essa defesa do termo fracassa em levar em conta a definição precisa de trans dentro da ideologia transgênero, que é baseada na noção questionável de identidade de gênero.

Etimologia e história

Os termos "cis" e "trans" originam-se do latim, de onde podem ser traduzidos como "do mesmo lado de " e "do outro lado de". Seu uso como antônimos pode ser visto dentro de vários campos, como na isomeria geométrica da química orgânica, no chamado teste de complementação cis-trans da genética ou em termos geográficos como Transjordânia e Cisjordânia (às margens leste/oeste do rio Jordão). A palavra "cis" é presumivelmente menos conhecida que "trans", posto que muitos - se não a maior parte - dos termos que utilizam a palavra "trans" não possuem um equivalente lógico que utilize "cis", como por exemplo: transação, transformar, transatlântico, transpacífico etc.

Em um ensaio de 1998, o sexólogo Volkmar Sigusch cita o seu próprio artigo "Die Transsexuellen und unser nosomorpher Blick" ("Transexuais e a nossa visão nosomórfica") como a origem do termo "cissexual",[3] que pode ser visto como um precursor do termo "cisgênero".

Os termos "cisgênero" e "cissexual" foram usados no artigo de 2006 do Journal of Lesbian Studies (Revista de Estudos Lésbicos) entitulado Debating Trans Inclusion in the Feminist Movement: A Trans-Positive Analysis (Debatendo a Inclusão Trans no Movimento Feminista: Uma Análise Trans-Positiva)[4] e no livro de 2007 de Julia Serano Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity (Whipping Girl: Uma Mulher Transexual no Sexismo e no Bode Expiatório da Feminilidade).[5] A esses trabalhos atribui-se a popularização do termo entre falantes da língua inglesa e acadêmicos.[6]

Uma análise do Google Trends mostra que o interesse no termo cisgênero era virtualmente não-existente nos anos anteriores a 2010. Depois de um aumento gradual em meados de 2014, um pico repentino de interesse pode ser visto em fevereiro de 2014, e eventuais picos acompanhados de um aumento no interesse geral durante os anos subsequentes.[7]

Crítica feminista

Por mais que uma definição simplista de cisgênero, tal como "qualquer pessoa que não seja transgênero" pareça inofensiva, a definição precisa apoia-se no conceito de identidade de gênero. É dito que uma "mulher cis", por exemplo, é um ser humano que é fisicamente fêmea e que possui uma "identidade de gênero feminina". Enquanto proponentes da ideologia transgênero recusam-se a explicar o que significa ter uma identidade de gênero feminina, isso parece similar à noção opressiva de que mulheres possuem uma psiquê feminina ou uma identificação inerente com estereótipos femininos. Por mais que uma pessoa com anatomia feminina possa se desidentificar com o gênero feminino sob essa visão de mundo, ela cria uma falsa dicotomia entre mulheres que supostamente pertencem ao gênero feminino e mulheres que não pertencem.

O feminismo não acredita que perguntar se alguém se identifica com as características sociais particulares e expectativas atribuídas a essa pessoa no nascimento é um jeito politicamente útil de analisar ou entender gênero. Eliminar atribuições de gênero, permitindo ao indivíduo escolher um entre dois moldes pré-existentes de gênero, enquanto continuam a celebrar a existência e o naturalismo do próprio "gênero", não é um objetivo social progressivo que promoverá a libertação das mulheres. O feminismo alega que gênero é um fenômeno social muito mais complicado (e sinistro) do que o binário popular cis/trans possui qualquer esperança de capturar. -- Elizabeth Hungerford, Uma crítica feminista de "cisgênero"

Esse conceito deixa pouco espaço para uma mulher que está confortável com sua anatomia feminina, vê a si própria como nada além de uma "mulher" em concordância com a definição biológica direta, mas que rejeita a noção sexista de uma natureza feminina inerente em sua personalidade. Ela poderia ser uma feminista radical fortemente não-conformante com gênero e ainda assim o mero ato de denominar-se uma "mulher" significaria que ela possui uma identidade de gênero feminina. Como tal, ela pertenceria na mesma categoria que uma mulher conservadora que adere estritamente às noções tradicionais de feminilidade. Além disso, mesmo se definíssemos aquela que já foi mulher como "transgênero" com base na sua não-conformidade de gênero, a mulher em conformidade com a feminilidade teria que ser vista da forma que é de acordo com a sua natureza inerente, já que é dito que ser transgênero/cisgênero não é uma escolha. Oposta a isso, a perspectiva feminista diria que a mulher que se conforma à feminilidade tradicional internalizou sua opressão sexista, limitando a sua liberdade, e poderia libertar-se mentalmente e adotar a não-conformidade de gênero se aderisse a uma consciência política feminista.

... apesar de possuir uma biologia feminina e autodenominar-me mulher, não me considero um estereótipo de gênero bidimensional. Não sou a manifestação ideal da essência da feminilidade, e portanto sou não-binária. Assim como todas as outras pessoas. Contudo, é pouco provável que aqueles que se descrevem como não-binários fiquem satisfeitos com essa conclusão, pois sua identidade como 'pessoa não-binária' depende da existência de um grupo muito mais amplo de tão-chamadas pessoas 'cisgênero', pessoas que são incapazes de estar fora dos gêneros masculino/feminino arbitrários ditados pela sociedade.

E aqui temos a ironia sobre algumas pessoas insistirem que elas e um punhado de revolucionários de gênero são não-binários: ao fazer isso, elas criam um falso binário entre aqueles que se conformam às normas de gênero associadas ao seu sexo, e aqueles que não se conformam. Na realidade, todos são não-binários. Todos nós participamos ativamente em algumas normas de gênero, concordamos passivamente com outras, e ainda protestamos positivamente contra outras. Então denominar-se não-binário é de fato criar um novo falso binário. Isso também parece envolver com frequência, pelo menos implicitamente, posicionar-se no lado mais complexo e interessante desse binário, permitindo à pessoa não-binária alegar ser tanto incompreendida quanto oprimida politicamente pelas pessoas cisgênero binárias. -- Rebecca Reilly-Cooper, A ideia de que gênero é um espectro é a nova prisão de gênero

Outro problema com o conceito de cisgênero surge ao considerar-se mulheres lésbicas, principalmente lésbicas masculinas, a quem a não-conformidade de gênero parece natural. Enquanto qualquer mulher pode escolher desconsiderar regras de feminilidade após passar por um processo de consciência política, algumas mulheres, especialmente lésbicas, podem sentir-se naturalmente repelidas por estereótipos femininos a partir da primeira infância. O conceito de identidade de gênero implicaria que elas são possivelmente transgênero e, como tais, não-mulheres, embora sintam-se perfeitamente satisfeitas com a palavra "mulher" quando removida de seus estereótipos femininos e limitada a uma definição científica não-sexista. Ainda assim, o conceito de "cisgênero" agrupa-as junto com mulheres que consideram fácil performar feminilidade, apagando, efetivamente, suas experiências únicas com relação a gênero.

Leituras recomendadas

Referências

  1. Schilt, Kristen; Westbrook, Laurel (August 2009). "Doing Gender, Doing Heteronormativity: 'Gender Normals,' Transgender People, and the Social Maintenance of Heterosexuality". Gender & Society. 23 (4): 440–464 [461]. doi:10.1177/0891243209340034.
  2. Reilly-Cooper, Rebecca (28 June, 2016). Gender is not a spectrum. Aeon.co. Aeon.
  3. Sigusch, Volkmar (February 1998). "The Neosexual Revolution". Archives of Sexual Behavior. 27 (4): 331–359. doi:10.1023/A:1018715525493. PMID 9681118.
  4. Green, Eli R.. "Debating Trans Inclusion in the Feminist Movement: A Trans-Positive Analysis". Journal of Lesbian Studies. 10 (1/2): 231–248 [247]. doi:10.1300/j155v10n01_12. PMID 16873223.
  5. Serano, Julia (2007). Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity. Seal Press. p. 12. ISBN 978-1-58005-154-5.
  6. Pfeffer, Carla. "Trans (Formative) Relationships: What We Learn About Identities, Bodies, Work and Families from Women Partners of Trans Men". Ph.D Dissertation, Department of Sociology, University of Michigan.
    Williams, Rhaisa (November 2010). "Contradictory Realities, Infinite Possibilities: Language Mobilization and Self-Articulation Amongst Black Trans Women". Penn McNair Research Journal. 2 (1).
    Drescher, Jack (September 2009). "Queer Diagnoses: Parallels and Contrasts in the History of Homosexuality, Gender Variance, and the Diagnostic and Statistical Manual". Archives of Sexual Behavior. 39 (2): 427–460. doi:10.1007/s10508-009-9531-5. PMID 19838785.
  7. cisgender - Explore - Google Trends. trends.google.com.